
- As palmadas magoam mesmo?
- As palmadas que me deram não me fizeram mal. Seria eu quem sou hoje sem elas?
- Há tantas violações piores dos direitos das crianças…
- Os pais não deveriam ser impedidos apenas em casos extremos de maus-tratos a crianças?
- Não há uma grande diferença entre bater numa criança e dar-lhe uma «palmada pedagógica»?
- Porque não definir o que são palmadas leves?
- As crianças não vão acabar mimadas e indisciplinadas?
- Então, e os pais não podem dar uma palmada aos filhos para evitar que se magoem?
- Tanta coisa mudou no mundo. Porque continuam os pais a bater nos filhos?
1. As palmadas magoam mesmo?
Sim, magoam. Física e emocionalmente. Em investigações um pouco por todo o mundo, as crianças começam a dizer-nos o quanto os castigos corporais as magoam. O Estudo do Secretário-Geral da ONU sobre a Violência contra as Crianças, foi o primeiro estudo global abrangente a respeito da natureza e extensão do problema. Eis algumas conclusões desse estudo:
«As crianças manifestaram de forma consistente a necessidade urgente de que se acabe com toda a violência. As crianças têm relatado a dor – não apenas física, mas “a dor interior” – que essa violência lhes causa, agravada pela aceitação e aprovação da mesma por parte dos adultos.»
Infligir dor física a uma criança é, por si só, uma violação do direito das crianças à proteção contra agressões – e os adultos muitas vezes não avaliam bem a diferença de tamanho e força entre eles e a criança, nem o impacto que essa diferença pode ter na dor que a criança sente de facto. Uma ampla pesquisa em que se perguntou aos pais sobre a força utilizada constatou que dois em cada cinco tinham utilizado um grau de força maior do que pretendiam. E uma pesquisa realizada pelo Institute of Psychiatry e o University College London provou que, quando a força é usada em situações de retaliação, o grau de força aumenta, assim como a incapacidade de avaliar quanta está a ser usada.
Além disso, os adultos não avaliam a dor emocional provocada pelo castigo corporal, o seu impacto na dignidade da criança e os danos potenciais de curto e longo prazo que isso pode acarretar nas pessoas e na sociedade. Existem mais de 300 estudos sobre os efeitos dos castigos corporais, associando-os a uma ampla variedade de consequências negativas em termos de saúde, desenvolvimento e comportamento, que podem acompanhar as crianças até à idade adulta – incluindo saúde mental debilitada, desenvolvimento cognitivo fraco, notas mais baixas na escola, aumento da agressividade, regulação moral baixa e aumento do comportamento antissocial.
2. As palmadas que me deram não me fizeram mal. Seria eu quem sou hoje sem elas?
Nenhum de nós sabe em quem nos teríamos tornado se os nossos pais nunca tivessem nos batido ou humilhado. E muitas pessoas, ao dizerem que não lhes fez mal nenhum, estão a negar a dor que sentiram quando os adultos que lhes eram próximos pensaram que só poderiam educá-los por meio da dor.
Os adultos que batem nos filhos em nome da disciplina normalmente começam a fazê-lo porque também eles foram agredidos em crianças. Apesar de pesquisas mostrarem que esses adultos muitas vezes se sentem culpados depois da agressão, eles continuam a bater nos filhos, especialmente quando estão no limite da sua paciência. É inútil culpar gerações anteriores, pois elas estavam a agir de acordo com a cultura dominante na época. Mas é errado resistir à mudança por medo de que pareça que estamos a criticar os nossos pais. Os tempos mudam e as sociedades avançam. O reconhecimento das crianças como detentoras de direitos requer medidas para acabar com a aceitação social da violência contra as crianças, do mesmo modo que as sociedades avançaram para acabar com a aceitação da violência contra as mulheres.
3. Há tantas violações piores dos direitos das crianças…
Como a UNICEF registou, a «disciplina» violenta é a forma mais comum de violência contra as crianças. Os castigos corporais matam milhares de crianças – a maioria muito jovem – em todo o mundo anualmente, e ferem muitos milhões mais. Não é uma questão insignificante ou de menor importância.
Mas não é apenas uma questão de proteção à criança. A legalidade do castigo corporal em tantos países é o reflexo mais simbólico do status inferior das crianças, consideradas propriedade e «menos que pessoas» em vez de detentoras de plenos direitos. Os castigos corporais refletem a experiência quotidiana da maioria das crianças do mundo e, em todos esses casos, a dignidade e a integridade física da criança são violadas. Assim como a proibição e a contestação da violência doméstica contra as mulheres têm sido essencial para o seu empoderamento e a aceitação dos seus direitos, o mesmo se dá em relação às crianças. A proibição dos castigos corporais eleva o status das crianças e contribui positivamente para o modo como são vistas e tratadas em sociedade. Nenhum país pode afirmar que respeita as crianças enquanto detentoras de direitos da mesma forma que os adultos – nem tão-pouco afirmar que dispõe de um sistema eficaz e seguro de proteção às crianças – enquanto tolerar a violência contra elas.
4. Os pais não deveriam ser impedidos apenas em casos extremos de maus-tratos a crianças?
As sociedades estão a parar de olhar para as crianças como propriedade dos pais para vê-las como pessoas por direito próprio. Enquanto seres humanos, as crianças gozam de direitos humanos – e estes não acabam no momento em que elas entram em casa. As crianças têm o mesmo direito à proteção contra castigos corporais que todos os outros membros da família. Insistir para que a lei proteja as crianças contra agressões em casa não é mais invasivo da privacidade nem da vida familiar do que insistir para que a lei proteja os adultos contra a violência conjugal íntima.
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança defende a importância da família e promove o conceito da responsabilidade parental, no qual o interesse superior da criança é a preocupação básica dos pais (art. 18.º). Algumas pessoas argumentam, de forma perversa, que bater numa criança em nome da disciplina é, na verdade, no interesse superior da criança em longo prazo. Mas como o Comité dos Direitos da Criança declarou:
«… a interpretação do interesse superior da criança deve ser consistente com o conjunto da Convenção, inclusive com a obrigação de proteger a criança contra todas as formas de violência e com o requisito de dar o devido peso às opiniões da criança; o interesse superior da criança não pode ser usado para justificar práticas, inclusive o castigo físico e outras formas cruéis ou degradantes de castigo, que entrem em conflito com a dignidade humana e com o direito à integridade física da criança.»
É importante que os pais compreendam que os castigos corporais estão associados a relações familiares problemáticas e a uma longa lista de consequências negativas para os seus filhos, sem quaisquer consequências positivas.
5. Não há uma grande diferença entre bater numa criança e dar-lhe uma «palmada pedagógica»?
Bater numa criança pode magoar mais do que a chamada «palmada pedagógica» em termos físicos, porém, ambas as situações recorrem a violência e ambas violam o direito da criança ao respeito e à dignidade humana e integridade física. As sociedades não definem fronteiras nem tentam justificar qualquer nível de violência quando contestam a violência contra idosos. Então porque haveriam de fazê-lo quando se trata de crianças? E os perigos de se estabelecer qualquer relação entre amar e magoar pessoas deveriam ser óbvios. Uma «palmada carinhosa» é uma contradição perversa. Este termo aparentemente inofensivo é um véu por detrás do qual violações de direitos podem estar escondidas.
Algumas pessoas argumentam que «há uma grande diferença entre maus-tratos e uma palmada leve». No entanto, é incorreto sugerir que os adultos têm um controlo preciso sobre o grau de violência que utilizam. A pesquisa mostra que muitas vezes se usa mais força do que o que se pretende, e que o grau de força tende a aumentar. E, mais uma vez, qualquer que seja a intensidade da agressão, ela viola o direito da criança à sua integridade física.
6. Porque não definir o que são palmadas leves?
Não existe algo como palmadas «leves». Toda e qualquer palmada ataca a integridade física da criança e mostra desrespeito pela sua dignidade humana. Diversos estudos já demonstraram que formas mais suaves de castigos corporais são um fator de risco para violência grave caracterizada como maus-tratos; e a tendência para o aumento de força e falta de capacidade para avaliar a força utilizada já foi provada.
Alguns países tentaram definir maneiras aceitáveis de se bater nas crianças – com que idade, em que partes do corpo, com que objetos e assim por diante. Além de enviar uma mensagem muito confusa sobre a atitude da sociedade em relação à violência contra as crianças, esse exercício é extremamente indigno. Não pensaríamos em tentar definir quais as formas aceitáveis de agredir mulheres, idosos ou qualquer outro grupo da população. As crianças têm o direito à igualdade de proteção contra agressões. Na verdade, as crianças – geralmente menores e mais frágeis que o resto de nós – têm direito a uma proteção maior.
7. As crianças não vão acabar mimadas e indisciplinadas?
Não. Disciplina não é o mesmo que castigo. A verdadeira disciplina não se baseia em força. Desenvolve-se a partir da compreensão, respeito mútuo, tolerância e comunicação mútua efetiva. Os bebés começam a vida completamente dependentes e, à medida que crescem, confiam e contam com os adultos – em especial com os seus pais – para guiá-los e apoiá-los em direção à maturidade com autodisciplina. Os castigos corporais não dizem nada às crianças sobre o modo como se devem comportar. Pelo contrário, bater nas crianças é uma aula sobre mau comportamento. Ensina às crianças que seus pais acham aceitável o uso da violência para resolver problemas ou conflitos.
Bater nas crianças também envia uma mensagem confusa às crianças: a de que – embora não devam bater em outras crianças ou adultos e adultos não devam bater em outros adultos – é aceitável que os adultos, que são maiores e mais fortes, batam nas crianças, que geralmente são menores e mais vulneráveis. As crianças aprendem com o que os pais fazem, e não apenas com o que eles dizem.
E respeito não deve ser confundido com medo. E o suposto «bom» comportamento devido ao medo de ser castigado significa que a criança está a evitar ser castigada, e não a demonstrar respeito. As crianças aprendem a respeitar verdadeiramente as pessoas e as coisas quando apreciam o seu valor intrínseco. Quando os pais batem nos filhos em nome da disciplina, as crianças aprendem a «comportar-se» apenas para evitar o castigo e aprendem que a violência é uma forma aceitável de lidar com desentendimentos. Mas quando os pais mostram respeito pela dignidade humana e a integridade dos seus filhos e das outras pessoas, as crianças aprendem o respeito. Quando os pais educam os filhos de formas positivas e não violentas, as crianças aprendem que os conflitos podem ser resolvidos sem desrespeito.
Os castigos corporais e outras formas cruéis ou degradantes de castigo não são um substituto para formas positivas de disciplina. Longe de mimar as crianças, a parentalidade positiva foi concebida para garantir que as crianças possam aprender a pensar sobre os outros e sobre as consequências das suas ações.
8. Então, e os pais não podem dar uma palmada aos filhos para evitar que se magoem?
Dar uma palmada a uma criança para impedir que ela se magoe não faz sequer sentido.
Os pais precisam de usar ações físicas para proteger os filhos – em especial bebés e crianças pequenas. Faz parte da paternidade. Se uma criança está a gatinhar em direção ao fogo, ou a correr para uma estrada perigosa, os pais naturalmente utilizam meios físicos para a parar – agarrando, levantando, mostrando e explicando o perigo. Mas bater e causar dor nas crianças prejudica completamente a mensagem de que elas têm de aprender a manter-se seguras e que, até conseguirem fazê-lo, os seus pais vão mantê-las em segurança. Conforme esclarece o Comité dos Direitos da Criança:
«… exercer a paternidade e cuidar de crianças, em especial bebés e crianças de tenra idade, exigem ações físicas e intervenções frequentes para protegê-las. Isso é bem diferente do uso deliberado e punitivo da força para causar algum grau de dor, desconforto ou humilhação. Como adultos, nós sabemos por nós mesmos a diferença entre uma ação física protetora e uma agressão punitiva; não é mais difícil fazer essa distinção quando se trata de ações que envolvem crianças.»
Existe uma distinção muito clara entre utilizar a força para proteger crianças e utilizar a força para castigá-las e deliberadamente magoá-las. A lei em todos os países, explícita ou implicitamente, permite o uso da força não punitiva e necessária para proteger as pessoas. Eliminar o direito de utilizar a força para castigar não interfere nisso de forma alguma.
9. Tanta coisa mudou no mundo. Porque continuam os pais a bater nos filhos?
Parece haver uma série de razões para a dificuldade que os adultos têm em desistir do que continuam a considerar ser um «direito» de bater e magoar as crianças em nome da «disciplina» ou do controlo:
1 – Experiência pessoal.
A maioria das pessoas em todo o mundo foi sujeita a castigos corporais de alguma espécie por parte dos pais quando era criança. A maioria dos pais bateu nos seus filhos. Nenhum de nós gosta de pensar mal dos nossos pais, ou do modo como nós próprios educamos os nossos filhos, o que torna difícil para muitas pessoas – incluindo políticos, líderes de opinião e até mesmo aqueles que trabalham na área da proteção às crianças – ter a perceção dos castigos corporais como a questão fundamental que é em termos de igualdade e direitos humanos. Não se trata de culpabilizar – os pais têm agido de acordo com as expetativas sociais –, mas chegou a hora de avançar para relações positivas e não violentas com as crianças.
2 – Com frequência, os adultos batem nas crianças porque estão com raiva, stressados ou no limite da paciência.
Muitos adultos sabem, no fundo, que bater é uma resposta emocional ao calor do momento, e não uma decisão racional para «disciplinar» a criança. Quanto mais isso acontece, mais a agressão à criança se torna um modo automático de lidar com comportamentos problemáticos. Não é fácil alterar comportamentos automáticos. Mas eles podem ser mudados. À medida que se investir em educação e sensibilização do público em relação a formas positivas e não violentas de criar as crianças e aos direitos das crianças ao respeito e à integridade física, os pais irão desenvolver toda uma série de maneiras para lidar com comportamentos de que não gostem sem sentirem necessidade de agredir os seus filhos.
3 – Instinto primário de defesa.
Em resposta à agressividade e desobediência da criança, muitas vezes os pais tendem a responder no imediato com o mesmo gesto de violência. Se o filho lhes bate, batem de volta. Mas a criança ainda não tem as suas competências completamente desenvolvidas, ao contrário do adulto. Por isso, o adulto não pode responder da mesma forma.
4 – Vergonha.
Quando a criança se está a «comportar mal» em público, o adulto ganha perceção social e teme o que possam pensar acerca da educação que dá à criança e opta por lhe bater, para demonstrar que tem o controlo. Mas, mais uma vez, esse controlo é apenas garantido com base no medo e no uso da força. Na verdade, o adulto perdeu o controlo da situação, se apenas lhe resta o uso da força.
Poderia esse adulto responder assim ao mau-comportamento de um adulto em público? A resposta é «não». E tem de ser «não», mais ainda, se envolve uma criança indefesa, que é mais pequena do que ele.
Neste caso, como sociedade, temos de inverter a reação. Devemos valorizar os pais que conseguem manter a calma perante uma birra, e fazer com que os pais que percam a cabeça (e recorram ou ameacem recorrer à violência) se envergonhem.
5. Porque no imediato, funciona.
Numa situação stressante, o adulto dar uma palmada pode conseguir interromper uma birra. Ou não. Muitas vezes (e não poucas), apenas a exacerba. E mesmo que a interrompa naquele momento, não só não previne conflitos futuros entre o adulto e a criança, como poderá gerar problemas graves a longo prazo na criança que foi dela vítima.
Criar e educar uma criança é uma experiência ímpar, incrível e muito compensadora. Pode, porém, ser a espaços desafiante devido a inúmeros fatores: cansaço, falta de tempo, falta de dinheiro, dificuldades acrescidas em caso de família monoparental, doença física e/ou psicológica. Em alguns momentos ou casos, pode tornar-se uma tarefa hercúlea.
Em algumas situações, os pais e cuidadores precisarão de procurar meios e respostas sociais que os auxiliem. Neste site encontrará uma página com contactos úteis a que poderá recorrer com esse fim.
Mas a solução rápida e fácil para resolver um conflito – o recurso à violência – nunca é o caminho certo. Nem com adultos, nem muito menos com crianças, a quem devemos proteção, cuidados e afeto.
Chegou a hora de acabar com todos os castigos corporais às crianças. As crianças têm direito ao respeito e à igualdade de proteção contra todas as formas de violência, agora!
Ler mais em Global Initiative to End All Corporal Punishment of Children